Violações à neutralidade de rede ampliam o drama da desinformação no país do Marco Civil da Internet
No Brasil, a neutralidade de rede é garantida legalmente desde o Marco Civil da Internet, de 2014. Na prática, no entanto, não existe fiscalização e empresas a violam cotidianamente. Essas violações apresentam novos desafios à circulação de informação, ao acesso pleno à informação e à liberdade de expressão em um contexto político marcado pela desinformação massiva.
A maioria dos acessos à internet no Brasil é realizada por meio de aparelhos celulares que, em geral, possuem franquias de dados limitadas, mas que oferecem acesso diferenciado – sem custo à franquia – para alguns aplicativos, como o WhatsApp. Essa prática é uma violação do princípio da neutralidade de rede. Embora esse princípio esteja garantido legalmente, em uma lei que foi saudada internacionalmente, as violações à neutralidade marcam o cotidiano dos usuários de internet do país e impõem riscos à internet livre, à liberdade de expressão e à própria democracia.
Não podemos desconsiderar, por exemplo, os efeitos da violação da neutralidade de rede, aliada a outros fatores, como a existência de franquia de dados, para o que aconteceu nas eleições brasileiras de 2018, marcadas pela desinformação em massa. Informações falsas sobre um suposto material para ensinar crianças a serem gays, sobre a distribuição de brinquedos sexuais em escolas, sobre o Estado escolhendo o gênero dos alunos e muitas outras de grande alcance tiveram significativa influência no processo eleitoral. Segundo a chefe da missão de observadores da Organização do Estados Americanos (OEA) que acompanhou o país no período, o uso do WhatsApp para a disseminação de informações falsas nas eleições brasileiras foi um “fenômeno sem precedentes” no mundo e é justamente este aplicativo que costuma ter acesso nos planos de telefonia celular sem consumo de franquia.
As garantias legais da neutralidade de rede no Brasil
A neutralidade de rede pressupõe o tratamento isonômico e não discriminatório no tráfego de informação na internet. Esse princípio ajuda a garantir a preservação do caráter aberto da rede e a promover um ambiente de rede mais propício à democracia e à liberdade de expressão e à inovação.
Ainda em 2009, uma resolução do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) propôs dez princípios para a internet no Brasil, sendo a neutralidade de rede um deles. A resolução afirmava que a “filtragem ou privilégios de tráfego devem respeitar apenas critérios técnicos e éticos, não sendo admissíveis motivos políticos, comerciais, religiosos, culturais, ou qualquer outra forma de discriminação ou favorecimento”.
Em 2014, com a aprovação do Marco Civil da Internet, o Brasil entrou para o leque de países que concebem a neutralidade de rede como um princípio inerente da rede mundial de computadores com garantias legais. O processo de elaboração e aprovação do Marco Civil contou com a participação intensa de muitas organizações da sociedade civil, movimentos sociais e ativistas da liberdade na rede. O fundamento da aprovação de um Marco Civil era garantir a cidadania digital, ou seja, direitos dos usuários na rede – liberdade de expressão, privacidade e neutralidade de rede. Por esse motivo, o Marco Civil da Internet foi em direção oposta aos projetos até então em discussão no país, que buscavam apenas criminalizar alguns usos da internet e estabelecer formas de controle e vigilância.
O processo de elaboração e aprovação do Marco Civil contou com a participação intensa de muitas organizações da sociedade civil, movimentos sociais e ativistas da liberdade na rede. Essa participação popular na escrita do projeto possibilitou que a lei fosse encaminhada com grande legitimidade. Sua aprovação foi posterior à revelação, por Edward Snowden, do sistema de espionagem global estadunidense – que mostrou que a própria Presidenta da República do Brasil e seus ministros e ministras estavam sendo espionados. Tornou-se referência global de norma para direitos na rede e foi elogiado por um dos fundadores da web, Tim Berners-Lee.
O Marco Civil da Internet foi e regulamentado em 2016, por meio do Decreto Presidencial n. 8771/2016. Este Decreto foi publicado pela presidente Dilma Rousseff pouco mais de dois anos após a entrada em vigor da lei e um dia antes do afastamento da presidenta no processo de impeachment. Ele trata da neutralidade de rede em diversos artigos.
Em primeiro lugar, define o caráter excepcional da discriminação e degradação de dados prevista no MCI: “somente poderão decorrer de requisitos técnicos indispensáveis à prestação adequada de serviços e aplicações ou da priorização de serviços de emergência”. Também é permitido o gerenciamento da rede “com o objetivo de preservar sua estabilidade, segurança e funcionalidade”, desde que resguardados os padrões técnicos internacionais. Além disso, a regulamentação trouxe um arranjo institucional que estabeleceu um sistema de proteção da neutralidade da rede que coloca o Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) como o órgão que estabelece as diretrizes; a Anatel como responsável pela fiscalização técnica referente à infraestrutura; além do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência – composto pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) e pela Secretaria de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda (SAE) – e da Secretaria Nacional do Consumidor, que também assumem funções de apuração de denúncias e infrações. O Decreto de regulamentação avança, ainda, na busca de garantia do princípio de transparência previsto no MCI. Tanto os contratos de prestação de serviços com usuários finais quanto os sites passam a precisar informar eventuais práticas de degradação ou discriminação, seus efeitos e o que motivou tal prática.
A neutralidade de rede no Brasil possui um resguardo legal relativamente forte, como visto. Acontece que, na prática, se observa um total descumprimento das citadas previsões legais.
Violações da neutralidade marcam o cotidiano dos usuários da rede
No Brasil, 49% dos usuários de internet acessam a rede apenas por telefones celulares, índice que sobre para 80% nas classes DE, como mostra a TIC Domicílios 2017 (CGI.br). A grande maioria dos usuários de internet no Brasil lidam cotidianamente com violações à neutralidade de rede. Com a profusão dos celulares em planos pré-pagos e com franquias de dados, muitos desses usuários ficam com franquias esgotadas em grande parte do mês – mas conseguem continuar trocando mensagens por WhatsApp ou usando outros aplicativos como Facebook, a depender do plano contratado, embora sem acesso à internet como um todo. Assim, a grande maioria dos usuários de internet no Brasil lidam cotidianamente com violações à neutralidade de rede.
Existem pelo menos três formas de se discriminar conteúdos ou aplicações na internet – que violam o princípio da neutralidade de rede: bloqueando, reduzindo sua velocidade ou cobrando um preço diferente ou menos não cobrando pelo acesso àquele conteúdo.
O bloqueio de conteúdos pode acontecer de diferentes formas. Uma delas é a que costuma ocorrer em países com rigoroso controle da internet, por iniciativa dos próprios governos ou dos provedores de acesso – que, em geral, são direta ou indiretamente controlados pelo Estado. A China é um exemplo dessa prática.
A redução de velocidade ocorre quando determinado aplicativo específico não é carregado na mesma velocidade dos demais. Exemplo disso ocorre quando se diminui a qualidade de um serviço que concorre diretamente com a telefonia tradicional, os serviços de chamada como Skype, Viber, WhatsApp e outros; ou quando se dificulta o acesso dos usuários a determinado serviço concorrente, como serviços de VOD – Video On Demand; ou ainda quando se tenta impedir o acesso a serviços que podem violar direitos de propriedade intelectual de empresas parceiras de provedores de acesso, como o Torrent. Nesse último caso, existe uma grande dificuldade do usuário de perceber que a redução de velocidade está acontecendo, já que hoje as operadoras e fornecedoras do serviço de banda larga não disponibilizam uma ferramenta que permita tal acompanhamento.
A terceira forma de discriminação está na cobrança de preços por serviços ou aplicações. Esse modelo pode vir, por exemplo, com uma cobrança maior para garantir o acesso a determinado serviço. Essa prática se materializa quando há uma cobrança de taxa para acesso a determinado conteúdo ou quando provedores de acesso ofertam gratuitamente acesso a alguns aplicativos escolhidos pelos provedores – prática conhecida como zero rating. Essas discriminações influenciam diretamente a competição com outras aplicações. É esta a principal forma de discriminação de dados detectada no Brasil.
Essa observação resulta de uma pesquisa realizada em 2017 pelo Intervozes em parceria com a organização chilena Derechos Digitales, que analisou aspectos de regulação e implementação da neutralidade de rede na América Latina – precisamente no Brasil, Chile, Colômbia e México. Práticas de zero rating, franquias patrocinadas (promoções onde alguns serviços têm bônus na franquia de dados) para aplicativos próprios ou de terceiros, privilégios para aplicações como Facebook, Google e WhatsApp foram algumas das práticas ilegais detectadas na pesquisa.
Além dos casos listados acima, a própria prática de bloqueio da conexão do usuário após o término da franquia de dados é uma violação à neutralidade de rede. Embora o Marco Civil da Internet estabeleça que não pode haver “suspensão da conexão à internet, salvo por débito diretamente decorrente de sua utilização”, as empresas alegam que a suspensão do serviço após o término da franquia estaria de acordo com uma resolução da Anatel (614/2013). No entanto, a resolução não trata de bloqueio à internet – se, por um lado, ela autoriza os provedores a estabelecerem franquias de dados para planos de conexões móveis, por outro lado ela os obriga a continuarem oferecendo o serviço mediante nova cobrança ou redução da velocidade.
Já a degradação de tráfego – ou redução de velocidade - para alguns aplicativos é muito difícil de ser apurada – há poucos relatos ou denúncias públicas recentes que apontem para práticas de quebra da neutralidade de rede através da discriminação de pacotes de dados para fins comerciais pelas operadoras.
Há dificuldades, ainda, para que os usuários possam ter previamente informações transparentes, claras e com descrições suficientes sobre as práticas de gerenciamento e mitigação de tráfego adotadas – inclusive as relacionadas à segurança da rede, conforme previsão existente no Marco Civil da Internet e no Decreto Presidencial que o regulamenta.
Esse cenário aponta para uma série de desafios. Se o Brasil, por um lado, tem uma legislação de proteção de direitos na internet que é referência internacional e protege a neutralidade de rede em todas as dimensões aferidas nos indicadores do MOM, por outro a implementação dessas proteções legais está completamente frágil e as violações à neutralidade de rede moldam o uso à internet predominante no país.
Se grande parte dos cidadãos brasileiros tem seu acesso “à internet” reduzido a algumas aplicações, é impossível que possa qualificar as informações e usufruir do amplo horizonte de possibilidades que acompanharia o acesso à rede. Muitos querem responsabilizar os próprios usuários pela máquina de desinformação massiva em curso. Mas como cobrar de um cidadão a verificação de informações com planos de internet que não permitem acesso a sites, com franquias que restringem a internet e práticas de zero rating? Ainda que o grande desafio da desinformação não se reduza à questão da neutralidade de rede, não há solução que não passe por garantir acesso integral à internet.
A garantia da neutralidade de rede e o acesso universal e integral à internet são elementos fundamentais da cidadania nos tempos xatuais. Elas são condições para a ampliação da pluralidade e da diversidade de ideias em circulação, tão necessária para a democracia.
Texto publicado em abril de 2019.