Brasil: marco legal antigo, permissivo e ineficaz
Confira também o Especial na Le Monde Diplomatique Brasil
O Intervozes publicou uma série especial de artigos em parceria com a Le Monde Diplomatique Brasil, chamada Proprietários da Mídia no Brasil, discutindo resultados desta pesquisa. Além do texto abaixo, você pode conferir no especial da revista um artigo relacionado ao tema aqui discutido: “Regulação da mídia: a invisibilidade de uma agenda essencial à democracia”
A legislação que deveria regular a concentração da mídia no Brasil é antiga, fragmentada e estabelece diferentes determinações para cada segmento do mercado. Nem mesmo as poucas previsões legais existentes são aplicadas de fato: a propriedade da mídia não é monitorada constantemente pelas autoridades competentes, que se limitam a receber e registrar as informações enviadas pelas próprias empresas.
Não há legislação para evitar a propriedade cruzada, com exceção de um segmento, o de TV por assinatura. Isso significa que vários dos 26 grupos econômicos pesquisados no Brasil possuem emissoras de rádio, televisão aberta, jornais e portais na internet. Na verdade, o sistema de meios de comunicação de massa do país se fundamenta na propriedade cruzada, o que aumenta ainda mais a concentração da propriedade dos meios nas mãos de um pequeno grupo de empresas ou indivíduos. Isso acontece tanto a nível nacional quanto nas esferas estaduais e locais.
A única lei que coloca limites à propriedade cruzada é a que regula o mercado de televisão por assinatura (Lei 12.485/2011). De acordo com esta lei, empresas do setor audiovisual e de radiodifusão não podem controlar uma parcela de mais de 50% em empresas de telecomunicações. No sentido inverso, operadoras de telecomunicações não podem deter mais de 30% do capital vontante de empresas de produção de conteúdo e de radiodifusão.
Devido à falta de limites à propriedade cruzada de empresas de rádio, televisão, mídia impressa e portais online, o Grupo Globo, por exemplo, desempenha um papel central nos mercados de TV aberta, TV a cabo, internet e rádio. A Rede Globo é a líder do mercado de TV aberta; o conteúdo gerado por sua subsidiária GloboSat (incluindo GloboNews e dezenas de outros canais) é destaque no segmento de TV a cabo; o Globo.com é o maior portal brasileiro de notícias online; e duas de suas redes de rádio, Globo AM / FM e CBN, estão entre as dez maiores em termos de público.
O mesmo acontece com outros grupos, como Record e RBS. O grupo Record opera a RecordTV e a RecordNews na TV aberta e seu jornal Correio do Povo e o portal R7 estão entre os maiores do país. A RBS, por sua vez, possui uma emissora de TV aberta no Rio Grande do Sul; seus jornais Zero Hora e Diário Gaúcho estão entre os de maior circulação no país; administra duas redes de rádio (Gaúcha Sat /nacional e Atlântida/regional), o portal ClicRBS e outros investimentos em mídia digital e publicações impressas.
Nem mesmo a Constituição Federal, cujo artigo 220, parágrafo 5, determina que "a mídia não pode, direta ou indiretamente, estar sujeita a monopólio ou oligopólios" é aplicada, como demonstra a concentração da propriedade dos principais meios de comunicação do país nas mãos de alguns grupos.
Outra das poucas disposições legais que limitam a concentração da propriedade é o Decreto-Lei 236/1967 - uma lei de 50 anos, ainda em vigor. O parágrafo 2 do Artigo 12 limita em dez o número de outorgas que uma mesma empresa de televisão aberta pode ter em todo o território nacional e em dois o número de outorgas por estado. Também para concessões de rádio, este decreto-lei estabelece limites. O mesmo proprietário só pode ter, por exemplo, quatro rádios locais em ondas médias e seis em frequência modulada. O número de emissoras e afiliadas listadas nos sites de redes nacionais de rádio e televisão mostra que o mecanismo de formação de redes torna essa limitação sem sentido.
A mesma lei proíbe que os principais radiodifusores geradores de conteúdo se subordinem a "outras entidades que são constituídas com o objetivo de estabelecer direção ou direção única, através de cadeias ou associações de qualquer tipo". Novamente, as redes nacionais vão além desses limites.
A estrutura da rede não só garante o poder político e econômico direto a alguns grupos, mas também permite a concentração e o controle do mercado. O órgão público encarregado de investigar práticas prejudiciais à livre concorrência, arbitrar fusões e aquisições e determinar potenciais posições dominantes e poder de mercado é o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). No entanto, o Cade não realiza intervenções relevantes no setor de comunicação de massa.
Ainda mais grave é a liberdade total dos proprietários de mudar, transferir, comprar ou vender participações parciais ou totais nas empresas de radiodifusão, reforçada por uma recente decisão do governo federal, a lei 13.424/2017, aprovada após uma Medida Provisória do governo de Michel Temer. Este decreto suprimiu a obrigação dos organismos de radiodifusão de solicitar aprovação prévia a possíveis mudanças corporativas, permanecendo apenas a obrigação de comunicar essas mudanças ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Informação e Comunicação (MCTIC) depois que elas ocorreram.
Esta é uma das raras determinações para que esse tipo de informação seja tornada pública - e mesmo assim apenas para a agência reguladora e não para os cidadãos em geral. A Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) publica alguns dados sobre a composição corporativa das empresas de rádio e televisão no Sistema de Acompanhamento de Controle Societário (SIACCO), mas o faz sem qualquer determinação legal.
Apesar da lei impor limites de outorga para a radiodifusão e mesmo de participação de capital estrangeiro neste setor e em empresas de jornalismo, os instrumentos estatais para aferir o cumprimento da norma são demasiadamente débeis. O Executivo Federal, que tem a competência constitucional de regular o setor da radiodifusão, não consegue executar as suas atribuições de forma eficaz.
O mesmo ocorre em relação às agências reguladoras. O Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovação e Comunicações (MCTIC), herdeiro da pasta específica das Comunicações (extinta em maio de 2016), tem uma equipe extremamente reduzida para o acompanhamento da quantidade de emissoras de rádio e TV outorgadas, além dos milhares de títulos de jornais e revistas, que não precisam da autorização prévia do Poder Executivo.
A inexistência de informações públicas e confiáveis sobre esse tipo de fiscalização do MCTIC e sobre sanções e punições aplicadas a emissoras também torna difícil saber quanto essas exigências legais são ou não consideradas durante os processos de concessão de licenças. A indisponibilidade dos dados sobre os proprietários das emissoras, sobre prestadores de serviço e sobre as mudanças na composição acionária são mais uma evidência da falta de disposição política de fazer um monitoramento efetivo dos limites previstos em lei.
Texto publicado em outubro de 2017.
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